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O que as gerações mais velhas nos ensinaram sobre cultura de trabalho?
Data
- April 4, 2024
Criador
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A casa sempre é outra casa nas sextas-feiras. Todos os outros dias, jazz toca alta no escritório do meu genro, competindo com a televisão alta na sala. Por anos, minha neta corria pela casa com Margarida, a vira-lata cor de chocolate que encontramos na rua do lado. Hoje, Margarida está velha e se arrasta pelas tábuas de madeira da casa, confusa. Clara não mora mais aqui, e levou consigo a música que só crianças sabem tocar, mas em geral essa casa ainda é barulhenta. O jazz, a novela da minha filha na sala, os movimentos intestinais da Margarida, o bater de porta dos gêmeos, meus outros netos que ainda são adolescentes e por isso tendem a bater portas mais do que o normal.
Menos nas sextas. Minha filha e seu marido sempre vão ao cinema nas sextas; quando chego do trabalho, não espero escutar nem jazz nem a novela das nove. Os gêmeos foram fazer mais coisas que adolescentes fazem, e eu não espero escutar suas vozes distantes no quarto deles, a frustração com o videogame da vez atravessando as paredes finas da casa. Quando abro a porta, o silêncio me envolve e parece me dar permissão para sentir minhas costas pela primeira vez no dia. A pressão na minha lombar ironicamente me traz de volta à juventude, às primeiras vezes que senti dor nas coisas com vinte e poucos anos e me perguntava se era assim que sabíamos que o tempo passava mesmo.
Antigamente, sextas-feiras me traziam paz. O barulho sempre foi meu lar, sempre me trouxe paz, mas os momentos de silêncio que se guardam no fim da semana sempre foram valiosos. Chegava em casa às nove ou dez, colocava os pés para cima e respirava pela primeira vez no que pareciam dias. E não fazia nada. Sem jazz, sem novela, sem videogame, apenas eu e Margarida flertando com a inércia e suas delícias. Recentemente, sexta não me traz mais alívio. Parece um lembrete de que estou cansado. De que o tempo passou. De que não tenho mais tantas sextas, e talvez as poucas horas da semana que me permito respirar antes de apagar no sofá não tenham sido o bastante. Minhas costas doem, meu corpo corre atrás de si mesmo, meus netos não são mais crianças e Margarida está velha. Não lembro da última vez que a levei no parque para fazer nada.
Então, nessa sexta como tantas sextas antes dela, acontece algo tão raro que meu corpo imediatamente se cobre de calafrios: alguém chega. Clara entra pela porta alta, como sempre que a vejo. Toda vez, ela parece mais velha. Sua mãe a repreenderia por entrar sem avisar, diria que ela precisa ter cuidado para não me dar sustos. Ela me pede desculpas e vem até o sofá me abraçar. Levanto-me mesmo assim e acolho sua cabeça torcida em meu ombro como fazia desde que ela era bem mais baixa que eu. Seus pais não estão aqui, você precisa de algo? Ela me olha e sorri pequeno. No fundo de seus olhos escuros, reconheço a vontade de chorar que vivia na menina que caía no pátio e queria ser forte através do joelho ralado. Estou cansada, vô.
Clara conta que ia ao cinema com os pais, mas não conseguiu sair do trabalho a tempo. Clara se derrete no sofá da sala, e pela primeira vez em mais de uma década eu vejo minha neta chorar.
Por muitos anos, a tradição de sexta foi a mesma: eu chegava do trabalho quase às nove e minha filha e seu marido saiam com pressa para dar tempo de assistir a última sessão. Clara ficava comigo, brincando no tapete enquanto eu me permitia fazer nada. Às vezes, na fase das perguntas sem fim, indagava o que eu fazia de dia. Para ela, era simples assim: eu só existia quando o sol já tinha ido embora. Eu ria, contava que gostava de apertar o botão que apagava a luz. De vez em quando, brincava que competia com os colegas de trabalho para ver quem ficava até mais tarde.
Agora, Clara está para o teto com os olhos molhados e parece muito com a menina que era. Ela não vê, mas pela primeira vez em anos, também me deixo chorar. Eu não sei o que fazer com o vazio que eu queria que fosse silêncio. Eu não sei como voltar no tempo, mas com minha neta aqui ele passa mais devagar.
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