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Húmus
Data
- February 20, 2024
Criador
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Certa vez, já na minha vida adulta, me deparei com um livro que me encantou profundamente. Por sorte, o livro caiu no meu colo num momento cheio de questões internas e foi como um colo macio.
Fiquei apaixonada pelo autor e pelo seu pensamento. Nestes mesmos dias, um desconhecido me viu mergulhada na tal leitura e me contou que conhecia o autor e que tinha o seu contato. Meus olhos brilharam e o tal desconhecido compartilhou este email comigo. Me senti como uma criança com acesso ao seu super-herói. Naquela noite escrevi um email curto e infantil, dizendo que eu gostaria de espalhar as suas teorias pelo mundo e agradecendo pela sua dedicação em tornar a vida das pessoas melhor através da sua obra. Também lhe contei que eu andava rezando por ele.
Quando recebi sua resposta, em duas frases amorosas e genéricas, tomei como um grande presente e me animei a levar adiante o que havia escrito: espalhar sua obra. Até hoje facilito cursos sobre sua teoria e apresento suas ideias. Não por fidelidade a ele, nem por concordar com tudo. Mas porque me tornei uma pessoa melhor e maior com isso. A inspiração que este ídolo me traz colabora para o florescer de um eu que admiro e confio. A forma que meu ídolo atua em mim me ajuda a ser alguém que também tenho como referência.
Conto essa história para lembrar que somos seres miméticos, aprendemos de forma referencial e imitativa e é natural termos ídolos. Há algo de muito saudável em percebermos qualidades, dons e talentos uns nos outros, sentirmo-nos representados, pertencentes e acolhidos por atos ou idéias de alguém que brilha ou brilhou sua luz. O ídolo, em essência, não precisa ser um líder, é mais um símbolo íntimo que guarda valores e potências. Amplia algo em nós. Não precisamos obedecê-lo nem o devemos fidelidade se em algum momento o que ele simboliza se desfaz.
Por mais que tentemos explicar as qualidades do nosso ídolo, seja ele um atleta, um pintor ou uma mulher santa, não é a destreza do chute, a precisão da pincelada ou o número de milagres que gera o vínculo da adoração. São as qualidades intrínsecas que percebemos ou projetamos: a força, a coragem, a resiliência, a liberdade, a pureza. Qualidades, que em essência, também habitam em nós.
Agora, na inversão e na confusão desta dinâmica, nasce uma dor, que vou chamar aqui de idolatria patológica.
Imagine você, que há gente que, ao invés de fazer da sua vida uma vida com mais sentido inspirada pelos seus bons ídolos, de forma autêntica e livre, passa a vida apenas projetando todos os valores que admira em seu adorado. Projeta, ou seja, tira de si e coloca fora de si. Inverte-se a ordem dos fatores e sua própria existência parece menor e menos significativa que a existência de seu idolatrado, seja este ente uma pessoa ou um time, um desenho animado ou qualquer bandeira.
Dar a vida por um ídolo – de forma figurativa e/ou literal – é o que acontece quando projetamos a perfeição e a sacralidade em algo fora de nós e esquecemos da sacralidade em nós.
Há nisso uma fuga, uma anestesia, uma distração séria para o próprio despertar do amor-próprio, da autoconfiança e da fidelidade aos valores que fazem realmente sentido.
Nessa projeção, onde queremos amar e ser amados por esse ente perfeito, fundirmos nossa existência medíocre à existência significativa do ídolo. Fazemos da existência do outro nosso fim e não nosso meio.
Nosso olhar idolatrado é um meio para uma vida mais inspirada, não um fim em si.
Projeção sobre humana, ilusão romântica de perfeição e perda de foco no autodesenvolvimento é a tal da idolatria patológica que citei. Pergunto: Seu ídolo, além de te alegrar e fazer vibrar, te tira o foco na sua vida? Você se sente inspirado, ou apenas um servente do brilho do outro?
Você deseja inspirar alguém também, ou isto é apenas para os grandes?
E claro, o principal: você tem percebido, com toda humildade, o seu brilho? Tem colocado as suas qualidades pra jogo? Tem manifestado suas versões mais bonitas e sinceras mesmo que sejam singelas e imperfeitas? Você honra seu caminho?
Sabe, todos nossos ídolos têm algo em comum: eles colocaram seus talentos no mundo, manifestaram, mostraram, ofereceram. Mesmo sendo criticados ou sem nenhuma plateia, eles deram voz à voz interna. Em algum momento foram humildes, e explico aqui minha visão de humildade:
A palavra Humildade tem o mesmo radical de húmus, aquele material orgânico que deixa nosso solo fértil para que a vida brote e cresça. O húmus se entrega completamente e deixa na terra todos os seus minerais. Não esconde, não guarda. Ele entrega. Então ser humilde não é apenas não perder-se do chão, da realidade, mas também entregar tudo que há de nutritivo em nós. Ofereça!
O húmus que cada um traz é único. Alegre-se com as tuas virtudes!.
Coloca tua luz pra jogo! É isso que faz quem você admira, não é? Faça da sua existência um palco bonito onde acertos são celebrados, erros corrigidos, onde haja um engajamento com o mistério dos próximos atos.
Sê boa referência para si. Que teus ídolos sejam húmus para seu amor-próprio, ousadia, resiliência, desenvolvimento. E que nenhum ídolo exerça o papel de sacos de cimento jogados sobre tua terra fértil, afogando sementinhas e ocupando todo o teu espaço com o que você não é.
"Faça da sua existência um palco bonito onde acertos são celebrados, erros corrigidos, onde haja um engajamento com o mistério dos próximos atos."
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