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Canção de ninar para o outono
Data
- July 29, 2024
Criador
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Lá fora tem um barulho. Como um sussurro, o vento sopra a árvore posturada que mora no quintal, mas a menina jura que lembra dos homens da prefeitura vindo arrancá-la no outono passado. Sim, ela se lembra. Foi a primeira vez que acordou chorando em anos, quando a árvore foi derrubada por uma tempestade no meio da madrugada e a pancada do tronco encontrando o chão a arrancou de um sonho qualquer. Ela se lembra de se esconder embaixo da manta ouvindo o cachorro no andar de baixo, na cozinha, tentando latir mais alto do que a chuva batia nos telhados da rua, como se furioso com o nada que assombra o mundo lá fora.
O cachorro ainda estava vivo naquela época? Devia estar. Ele latiu quando a árvore caiu. A árvore caiu quando ela ainda tinha sete anos, uns meses atrás, e o cachorro fez tanto barulho que até o do vizinho começou a latir de volta. Ela lembra de esperar ouvir os pés do seu pai descendo os degraus de madeira, os latidos de medo ou desafio cessarem, pés nos degraus de novo, seguidos de patinhas, então silêncio. Naquela noite seus pais dormiram pesado, e vai e volta de latidos durou até o amanhecer. Sim, ela lembra.
A árvore caiu, foi uns meses atrás numa noite de outono daquelas em que você parece ser a única pessoa em um raio de quilômetros ainda acordada. A árvore caiu quando o cachorro ainda estava vivo, mas quando ela olha para fora está ali, raízes firmes e postura imperturbável, como sempre esteve. A árvore não caiu coisa nenhuma. Deve ter sido um sonho.
Em algum lugar além da janela enferrujada, ela escuta a música dos pássaros acordando, ainda meio quietos, tímidos, quase como que sonolentos. Toda manhã os pássaros azuis cantam de algum lugar que ela não consegue enxergar, mas nunca antes do amanhecer. Ela pisca uma vez e uma segunda com mais força, mas a escuridão é insistente e não vai a lugar algum. Em qual estação estamos mesmo? Já é a época dos pássaros cantarem? Não pode ser. A vida toda, o mais cedo que ela lembra de ter escutado os pássaros azuis cantando foi em Setembro, uns anos atrás, quando o cachorro ainda estava vivo e era duas vezes maior do que ela. Na escola ela aprendeu que esse pássaro—tem um nome engraçadinho, ela não consegue lembrar—canta principalmente entre Setembro e Fevereiro, durante a época de acasalamento. Não faz sentido nenhum. O frio que escapa pela fresta da janela e a envolve é ríspido e excepcional, o tipo que só aparece por duas semanas em Julho e vai embora tão rápido quanto chegou. Não faz sentido algum. Algo está esquisito.
O frio se torna exponencialmente mais real a cada segundo depois que ela finalmente repara nele. Sua pele parece feita de papel; ela imagina o frio a rasgando por fora e invadindo seus interiores, ocupando rapidamente cada canto de seu corpo fraco. Quando era nova, nas raras noites de inverno de verdade, sempre perguntava aos pais se o frio tinha peso. Agora, ela tem dificuldade de entender se a força que parece a sufocar e tornar impossível se mover é o frio ou a manta de lã que cobre cada centímetro de sua pele de papel. Sobre a luz da noite, a manta parece verde. Que estranho, ela diz em voz alta e o eco das palavras, saltando entre as paredes finas, apenas a confunde mais. Sua voz, assim como seu corpo, parece de papel.
Que estranho, as paredes repetem. Ontem à noite seu pai leu sua história favorita daquela semana, algo sobre uma princesa ou uma fada, apagou a luminária, ligou a pequena luz de abelhinha que aos sete (oito?) ainda a protegia do escuro, beijou sua testa e a cobriu. Que estranho: ele a cobriu com a manta azul bebê na qual sua mãe tinha bordado dezenas de pequenas borboletas coloridas, não?
Suas mãos procuram a lâmpada mas não encontram nada; procuram o relevo de pequenas borboletas no tecido grosso e quente que a cobre, mas não encontram nada. A cama é grande demais, fria demais. Lá fora, a árvore continua zombando dela e parece ter se encolhido. Ela não lembra tão bem o que sobre aquela árvore a fazia parecer tão grandiosa, a única árvore no mundo capaz de alcançar sua janela. A folhagem é escura e tímida; sem alguma misteriosa parte de seu cérebro que ainda está dormindo, ela não é capaz de compreender se as folhas estão nascendo ou finalmente caindo. É outono ou primavera? O peso do frio e da manta esquece de si e rápido como a luz seu corpo flutua para mais perto da janela, a empurra com força, sente o ar livre e gelado abraçar seus braços nus. Ela respira, fecha os olhos, tenta formular a pergunta certa. Seu corpo, como sua voz, parece pertencer à outra pessoa.
A casa parece vazia, a manta não é a sua e a árvore diminuiu de tamanho. Ela ri de sua inocência; deve ser um sonho. Mamãe sempre disse que conseguir rir de si mesmo era a coisa mais importante que poderia me ensinar. Amanhã, no café, quando acordar de verdade, contará aos pais sobre esse sonho. Contará sobre a nova árvore magrela e os pássaros azuis em julho e a manta sem borboletas e como quando passou pelo espelho pendurado na porta do quarto seu reflexo era de uma mulher velha, com um rosto cheio de rugas e uma expressão plena, e que ela era a mulher mais bonita que eu já tinha visto. De manhã, seu pai vai mexer os ovos no fogão enquanto sua mãe passa o café e os dois vão rir de seu sonho esquisito como se fosse a história mais engraçada que escutaram em anos. Quando chegar na escola, vai ter esquecido metade do sonho; quando deitar para dormir amanhã, já não sobrará mais nada.
O gelado das tábuas de madeira do corredor espeta as solas de seus pés, e ela não se lembra de ter andado até ali. Quase doí, ela observa, mas não de verdade. As coisas nunca doem de verdade nos sonhos. Ela respira fundo. A casa não tem agonia e é preenchida por um sutil, distante cheiro de bolo de chocolate. Ainda não é seu aniversário, ela conta nos dedos, mas às vezes quando fazia frio e não tinha nada para fazer além de ficar em casa sua mãe fazia bolo e os três jogavam damas na sala, abocanhando garfadas entre partidas.
Ela desce as escadas nas pontas dos pés, apoiando-se no corrimão e se movendo em câmera lenta, mesmo que a casa pareça vazia. É a casa dela ou é uma casa que inventou só para esse sonho? Na parede uma linha de quadros segue o corrimão escada abaixo. Ela os observa com curiosidade, como se fossem um filme que viu faz muito tempo. Essa é a vida dela ou é uma vida toda que sonhou para esse sonho?
Em uma das fotos, ela mostra a língua sentada nos ombros altos do pai e sua mãe sorri ao lado, pequena, segurando um bolo de chocolate com os braços esticados ao alto para que a filha alcançasse a vela. O formato da vela é um “6” e a aniversariante usa uma asa de fada papel crepom. 6. Parece que foi poucos aniversários atrás, poucas velas, poucos dias. A foto ao lado é um retrato de sua mãe, cujos olhos claros e bem abertos refletem o flash da antiga câmera. Ela encara sua mãe de volta, eternizada dentro de uma moldura simples, e quase consegue escutar o pai atrás da lente repetindo entre risadas que não saia de olhos fechados de novo.
Outras fotos são como charadas, mosaicos de rostos estranhos sorrindo em lugares onde ela nunca foi. Uma mulher alta e loira, com um rosto redondo e um corte de cabelo esquisito. Uma sala de jantar com uma mesa redonda cheia e cadeiras de cores diferentes em volta. Duas crianças distraídas com os rostos lambuzados de picolé de uva. Uma árvore que não era familiar, uma noite de lua cheia, um casamento de estranhos. De algumas coisas lembrava vagamente, como alguém se recorda versos soltos de um poema que leu há muitos anos: uma porta amarela, um abajur de patinhos, a capa de um livro sobre montanhas, uma gravata verde limão, o sorriso de um estranho posando na praia de braços abertos ao sol. Sem explicação esses detalhes perdidos encontram algo anônimo dentro dela, algo que fica preso na garganta e de um segundo ao próximo a faz tomar uma vontade imensurável de chorar. Ela não sabe o caminho que precisaram fazer essas miudezas irreconhecíveis—a gravata, o abajur, o sorriso—para conquistar um cantinho nesse sonho, e a pergunta a tormenta e emociona. Será que já os conhece de outro sonho, de tantos sonhos que já parece que são velhos amigos? Ela quer chorar mas não chora. Por alguma razão, a urgência de tudo aquilo não a alcança. Ela encara por mais algum tempo e sente saudade sem saber de que.
A cozinha está escura e empoeirada. O cheiro de bolo fica mais forte, mas não tem nada nas bancadas. Tudo bem, dá para esperar o café da manhã, ela decide, não está com tanta fome assim.
Ela pensa em subir as escadas mas o esforço parece inconcebível. Com a diligência que resta em seu estado sonolento, ela carrega seu corpo pequeno até o sofá da sala. O frio é agudo e ela se sente afundar nas almofadas empilhadas. As coisas nunca são tão confortáveis nos sonhos, pensa em voz alta. Sua voz e a maneira que seu corpo vibra ao ritmo a sobressaltam por um instante, realizando o trabalho oposto da gravidade e a trazendo sutilmente para mais próximo da realidade.
Se isso for um sonho, ela vai acordar amanhã com oito ou nove anos e descer as escadas correndo. Da cozinha, seu pai vai gritar por cuidados enquanto faz os ovos e sua mãe vai o ecoar escondendo a risada. Enquanto comem, ela contará que essa noite sonhou para si uma vida inteira—uma coleção de primaveras e outonos, verões e invernos, embaralhados e empoeirados, reais como apenas com certas coisas conseguem ser nos nossos sonhos. Parece que o sol vai nascer logo. Pelos olhos metade abertos, ela vê com nitidez os contornos da escuridão lá fora. Então, de lá longe, escuta novamente. Com a alvorada tomando os céus e a música dos primeiros pássaros azuis que acordaram nesta linda manhã, ela se entrega de volta ao sono, seu corpo sutilmente se afundando no sofá.
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