A maravilhosa ironia de estar aqui

O conto segue uma mulher passando por um divórcio pacífico e nada dramático conforme ela redescobre o amor por si mesma e pela solidão.

Data

Criador

Artwork: Sol Diamand / Text: Isa Bernsteinn

Ver Hora

45 minutes

A janta era comida chinesa, religiosamente como toda terça-feira há tempo demais para lembrar exatamente o quanto. Ele comprou depois do trabalho, um pouco atrasado por causa do trânsito, e esquentou no micro-ondas enquanto eu arrumava a mesa – a louça que usamos todo dia, nada chique como a do nosso casamento; aquela era só para ocasiões especiais. Sentei em minha cadeira, a primeira à direita, meu lugar desde que nos mudamos para o apartamento, endireitei meu garfo e faca e esperei que ele sentasse à minha frente, como fazia toda noite pelos últimos vinte e um anos. Foi então, naquela terça-feira que parecia igual a toda terça-feira de nossas vidas mais do que ligeiramente rotineiras, quando ele decidiu me contar que amava outra pessoa. 

 Em um primeiro momento eu não processei suas palavras. Ele soou tão normal, sem absolutamente nenhuma indicação do que estava por vir. Simplesmente cuspiu as palavras na mesa, a dolorosa verdade sem nenhum tipo de eufemismo. O jeito em que ele disse soou como se estivesse me contando como tinha sido a reunião com seu chefe ou comentando notícias não particularmente interessantes que ouviu no rádio de manhã. Aquele tom, quase casual, certamente não é o tom no qual se informa sua esposa que seu casamento essencialmente acabou. 

“Eu acho que estou apaixonado por outra pessoa.” Ele repetiu depois de cinco segundos, agora mais sério, como se finalmente compreendendo o que as palavras ditas significavam e que sob nenhuma circunstância elas poderiam ser retiradas. 

Eu não disse nada, e na minha falta de palavras ele viu uma chance de preencher o tempo com as dele. Numa tentativa de ao mesmo tempo se justificar e se desculpar, ele explicou e explicou o quão inevitáveis eram seus sentimentos por essa mulher que eu não conhecia e como ele sabia que eu não merecia ter que escutar nada daquilo. Ainda em silêncio, concordei. Eu absolutamente não merecia aquilo, mas reconhecer isso por si só não é de fato o bastante para mudar nada. 

“Ei,” ele encarou minha mão, e em seus olhos eu vi a decisão de não segurá-la. “você não tem nada para falar?” 

Aquela era claramente uma pergunta estúpida. Como sua esposa de vinte e um anos, a pessoa que o amou por todas as coisas que a vida tem para dar, pela dor e a felicidade e funerais e casamentos e promoções e demissões e todos os dias ruins, não há dúvida de que eu teria muito a dizer ao descobrir que ele achava estar apaixonado por outra mulher. 

A questão é: eu não tinha. 

 “Você acha?” Foi tudo que eu disse. “Como que você acha que está apaixonado por outra pessoa?” 

Ele levantou as sobrancelhas, claramente confuso, provavelmente devido ao meu tom, tão casual quanto o seu quando resolveu me dar a grande notícia. 

“Sim. Eu acho.” Eu olhei para ele, esperando mais. “Eu não… Eu não consigo…” Ele parecia ter algo mais a dizer –  algo que era fundamentalmente incapaz de comunicar. “…não sei como…” 

“Meu deus, diz o que você quer tanto dizer.” Eu me encontrava estranhamente impaciente. A comida estava esfriando. 

 “Eu não tenho como ter certeza. Não assim. Amor não nasce desse jeito, sabe? Rápido e do nada. Mas tem uma possibilidade com ela. E parece mais forte do que…” Ele hesitou. 

“Nós?” Eu disse com uma óbvia tristeza em minha voz, mais porque que parecia apropriado do que porque eu de fato de me sentia triste. Ele balançou a cabeça, concordando. 

É claro que eu entendia perfeitamente o que ele queria dizer. Eu nunca havia acreditado em amor à primeira vista; o amor não nasceu quando ele se apresentou para mim naquela festa tantos anos atrás, seu nome dito entre os dentes em um sorriso encantador, seus olhos escuros encarando fundo os meus, mais fundo do que qualquer outra pessoa jamais havia encarado. O amor foi construído sobre conversas sobre a vida e a morte, brigas sobre coisas bobas e as vezes não tão bobas, segredos que achamos que levaríamos ao túmulo, silenciosas manhãs de domingo lendo jornal e tomando café, vinte anos de noites dormindo ao lado do outro e de memórias acumuladas sobre cada detalhe que é possível lembrar sobre alguém. Ainda assim, naquela noite de sábado tantos anos atrás, quando ele olhou em meus olhos meu corpo inteiro foi eletrizado com a possibilidade, e mesmo que eu não tenha me apaixonado naquele segundo, uma parte de mim sabia que seria inevitável que eventualmente acontecesse – eu sabia que não fazia sentido algum, claro que não fazia, mas eu também sabia que algumas coisas simplesmente não precisam fazer sentido.

Eu também entendia que a possibilidade havia se transformado em paixão e a paixão havia se transformado em amor, e a eletricidade sempre esteve ali. Amor, mesmo na rotina, na mais entediante e repetitiva vida, por si só é palpitante. Foi só quando ele balançou a cabeça naquela terça-feira enquanto nossa comida chinesa esfriava entre nós, que eu entendi que já fazia algum tempo desde que eu havia sentido aquilo. Eu estava com ciúmes. Não dela, quem quer que ela fosse e o que quer que fosse sobre ela, mas dele, porque eu queria sentir aquilo de novo. Eu queria sentir uma possibilidade forte o bastante para me fazer virar a vida perfeitamente confortável de cabeça para baixo. 

 “Eu não sei se a amo. Mas eu preciso descobrir.” Ele olhou para minha mão novamente, e novamente escolheu não segurá-la. 

 “Então você vai embora?” Eu disse com uma evidente raiva em minha voz, mais porque que parecia apropriado do que porque eu de fato me senti com raiva. 

Ele pediu desculpas outra vez, e parecia sinceramente culpado. “Eu sei que deve parecer maluquice fazer isso simplesmente porque eu acho que a amo. Mas só o fato de eu achar isso…” 

  “Diz algo sobre nós.” 

 Ele concordou, e não parecia haver mais nada o que falar, então continuei sentada e olhei ele olhando tudo em nossa sala de estar exceto meus olhos. 

  Parecia que eu deveria dizer algo mais. Brigar com ele ou gritar ou chorar ou perguntar o que ela tinha que me faltava. Mas a verdade é que a resposta não me importava muito. O que eu realmente sentia era confusão, simples e crua confusão, exatamente por não estar triste ou brava ou mesmo com ciúmes dela – do jeito que as coisas são, ou pelos menos deveriam ser, eu conclui que provavelmente deveria estar. 

Eu olhei em volta, contemplando o quase sufocante sentimento de confusão e a falta de qualquer outro até que fiquei entediada o bastante para lembrar que estava com fome. Então me levantei, peguei a comida chinesa que comíamos todas as terças-feiras, levei de volta para a cozinha, esquentei no micro-ondas, levei de volta para a mesa de jantar, coloquei no centro da mesa no exato lugar onde estava antes, sentei na cadeira de madeira escura em que sempre me sentava e comecei a comer enquanto perguntava sobre o dia dele no trabalho, como fazia todas as noites. 

  Ele ignorou a óbvia estranheza de tudo aquilo e durante o jantar me contou como havia sido a reunião com seu chefe e comentou uma notícia qualquer que havia escutado no rádio no caminho do trabalho. Quando acabamos de comer, ele lavou a louça e eu sequei, como fazíamos todas as noites. Depois que acabamos, ele foi até nosso quarto, fez uma mala rapidamente com as coisas mais básicas e me disse que voltaria logo para pegar o resto de suas coisas. Antes de ir embora, ele me desejou boa noite, e eu desejei de volta, exatamente como fazíamos todos os dias antes de dormir.  

Ao longo do mês seguinte, ele passou aqui algumas vezes por semanas para empacotar o resto de suas coisas. Algumas vezes eu estava em casa, ouvia a campainha que ele tocava mesmo ainda tendo a chave e o ajudava com as caixas em meio a conversa jogada fora; outras vezes eu não estava, ele usava a chave para entrar e quando eu chegava em casa encontrava o lar que por tanto tempo e com tanto amor construímos ligeiramente mais irreconhecível, um pouco mais perto de metade vazio. 

  Foi um mês estranho. Confuso mais do que tudo, porque eu esperava que a qualquer momento todas as coisas que eu não estava sentindo viessem de uma vez, como uma tempestade que eu não seria capaz de controlar. Nunca aconteceu. Então restou apenas um desconfortável sentimento de confusão, e foi só quando as semanas continuaram passando e metade do meu lar desaparecendo que eu comecei a compreender que a tempestade simplesmente não viria. Não havia raiva ou tristeza. Eu entendia que o amor profundo que sentia por ele havia desaparecido assim como o que ele sentia por mim, e onde um dia houve paixão agora havia apenas um vazio que não me permitia sentir nenhuma das coisas que qualquer outra pessoa julgaria inevitáveis. 

 

Ainda assim, levou certo tempo para que me acostumasse com a frieza do vazio ao meu lado quando deitava. Quando finalmente consegui, por obra de nada além do passar do tempo, encontrei a simples alegria de dormir sozinha em uma cama de casal.

  Ainda assim, levou certo tempo para que me acostumasse com a frieza do vazio ao meu lado quando deitava. Quando finalmente consegui, por obra de nada além do passar do tempo, encontrei a simples alegria de dormir sozinha em uma cama de casal. Fui ao cinema sozinha e chorei quando o casal finalmente se beijou no final. Fiz minha comida preferida em um dia de semana em vez de pedir de um restaurante qualquer como sempre. Comi um sanduíche na cama sem me preocupar com migalhas, deixei minha maquiagem na pia do banheiro, e fiquei bêbada de vinho em uma noite de segunda-feira. Foi só então, sozinha em meu apartamento, janelas abertas para a vista da cidade, as luzes de tantas janelas embaçadas aos meus olhos me lembrando do quão desesperadamente enorme o mundo é, minha música preferida que ele não tão secretamente odiava tocando no volume máximo, dançando sozinha mais bêbada do que esperava estar, que percebi que eu simplesmente havia esquecido que me amava, e naquele amor estava toda a eletricidade da qual eu silenciosamente senti tanta falta. 

Ontem à noite ele passou aqui para pegar sua última caixa. Dentro havia calças que não serviam mais, gravatas que ele nunca usou e sua metade da louça do nosso casamento, que não havíamos usado sequer uma vez desde então – estávamos esperando uma ocasião especial.  

  Ele sentou ao meu lado no sofá com a caixa lacrada e sua própria taça de vinho e conversamos sobre os papéis de divórcio, sobre quem ficaria com o carro e como contaríamos para nossos amigos. Ele pediu desculpas mais uma vez, e na minha mais genuína sinceridade, eu prometi: “Não é sua culpa.” 

E era verdade. Não era culpa de ninguém. Não dele, não minha, não dela. Isso era, na verdade, a parte mais dolorosa de tudo aquilo: não havia quem culpar. O fato é que a vida acontece e pessoas vão embora e é uma parte fundamental da simples natureza de todo sentimento que ele eventualmente evapore. E foi o que aconteceu: nosso amor desbotou. Éramos ambos culpados e vítimas da dor de se desapaixonar, e a única diferença é que ele encontrou alguém que o fez perceber antes de que eu encontrasse. 

  O silêncio entre nós vinha crescendo há tempo demais; as manhãs de domingo pararam de ser pacíficas e se tornaram simplesmente entediantes, beijá-lo havia se tornado tão automático quanto escovar os dentes e fazia muito desde que demos as mãos só pelo simples prazer de dar as mãos. Havia muito mais tempo do que éramos capazes de perceber desde a última vez que havíamos de fato sido nós, e era chocante para mim que eu não tivesse percebido isso no segundo que ele me contou sobre ela e meu coração não se quebrou em milhares de pedaços. 

Ontem à noite ele passou aqui para pegar sua última caixa. Dentro havia calças que não serviam mais, gravatas que ele nunca usou e sua metade da louça do nosso casamento, que não havíamos usado sequer uma vez desde então – estávamos esperando uma ocasião especial.   

“Ainda me sinto culpado. Não faz nenhum sentido. Não há nada de errado com a gente.”

“Algumas coisas não precisam fazer sentido.” Eu lembrei a ele, e a mim tambem. 

E em um momento de uma maravilhosa esquisitice, olhamos um para o outro e gargalhamos. Éramos simples e completamente incapazes de ignorar a dolorosa ironia de estar aqui. Você passa metade de sua vida aprendendo tudo sobre alguém, suas esperanças e medos e sonhos, cada detalhe de seu rosto, cada caminho de seu corpo, cada segredo que guardam em seus olhos, e um dia ele te diz que ama outra pessoa. Então, sem nenhuma explicação possível, o amor que você tem tanta certeza ser eterno e colorido se mostra desbotado e quase sem cor alguma, e não há opção alguma além de aceitar isso. Então nós aceitamos e rimos até que os segundos se tornassem minutos e perdêssemos completamente a noção do tempo. 

Quando paramos o que parecia ser horas depois, ofegamos até encontrar o ritmo normal de nossas respirações, e quando nada além do silêncio restou, ele finalmente segurou minha mão. Ele disse que me amava, e eu repeti em um sussurro, e naquele silêncio nenhum de nós dois sentiu a necessidade de completar mas não estou mais apaixonado por você. Já sabíamos. 

Depois que ele me devolveu sua chave e lavou sua taça, foi embora com sua última caixa, e restaram-me apenas um lar metade vazio, uma taça de vinho metade cheia e a mim mesma. Uma certa nostalgia flutuava no ar, um lembrete silencioso do inevitável final ao qual a maioria dos para sempres estava destinada. Eu havia perdido o que tão pouco tempo antes parecia ser tudo – não havia mais nada a ser arrancado de mim, e tudo estava bem. Eu estava sozinha – e era maravilhoso. E naquele momento, era verdade que eu não tinha muito mais do que um lar metade vazio, uma taça de vinho metade cheia e a mim mesma – e aquilo pareceu ser o bastante. 

Talvez você também goste