A cor do oceano

No futuro, uma mulher relembra o último verão que passou com seu avô, no hospital, durante sua adolescência.

Data

Criador

Arte por Maria Clara Dung / Texto por Isa Bernsteinn

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Passei a maior parte daquele verão sentada em uma cadeira de hospital, virando as páginas de um livro cujo título esqueci já faz certo tempo, olhando o sol quente pela janela e sonhando sonhos de uma vida que não era minha. Vieram e foram incontáveis horas imaginando nós dois, meu avô e eu, em qualquer lugar que não fosse aquele quarto de hospital. Aquele foi o verão em que me tornei uma leitora, depois de dezesseis anos dele tentando fazer com que eu me apaixonasse pelas palavras. Aconteceu finalmente naquele frio quarto de hospital onde eu lia em voz alta os livros favoritos dele. Eu queria ir para tantos lugares, ver o mundo todo e um pouco mais, ir a um lugar onde o tepo não existisse ou pudesse ao menos fazer o favor de parar para que eu pudesse ler para ele todos os livros que estavam começando a juntar poeira demais em sua estante. Mais do que tudo, eu queria ir à praia.

Sempre que eu pensava em minha infância, eram esses os dias que vinham à minha cabeça. Os dias em que eu era criança e vovô era saudável e lia mais livros do que eu conseguia contar. Eram tempos mais simples: o cheiro do sal do mar, o quebrar das ondas que nunca param de quebrar, a áspera música que fazem as páginas de um livro velho quando são viradas, a risada aguda e espaçosa da minha mãe e as piadas do meu avô, o gosto de picolés de morango baratos e o céu, que era tão maior naquela época.

Mas eu não era mais uma criança. Vovô estava doente já fazia alguns anos, eu precisava ler em voz alta seus livros favoritos de novo e de novo porque há algum tempo ele havia esquecido os detalhes, e já fazia talvez três verões desde a última vez que tínhamos ido à praia.

  • Eu estava ali porque já estava com saudades. Eu queria ser a pessoa que estaria lá, segurando sua mão e o lembrando de como acabava o livro que já havia sido seu favorito. Eu queria estar ali nos momentos em que ele lembrasse, quando me chamava pelo meu nome e repetia histórias de tantos anos atrás. E eu também queria estar ali quando ele esquecesse, quando suas mãos estivessem frias e ele soasse como alguém que não era ele e a pessoa que eu conhecia parecesse ter sumido quando eu olhasse em seus olhos. Doía, e mais do que eu conseguia entender completamente aos dezesseis, mas eu estava lá e segurava sua mão e algumas vezes ele segurava a minha de volta – e normalmente isso era o bastante.
  • Eu estava brava, é claro. Estávamos todos bravos. Minha mãe e eu com a vida e o universo e Deus ou quem quer que fosse, meu pai consigo mesmo por não saber como nos confortar, e meu avô com seu próprio corpo, por falhá-lo de um jeito que importava mais do que qualquer outra coisa. Eu estava brava, mas tinham coisas que ue ficavam do lado de fora do quarto de hospital quando eu passava por aquela porta pesada. Quando eu lia as palavras desbotadas dos livros que ele amava e ele sorria como se fosse a primeira vez que as tivesse escutado, porque de certo modo era, quando eu segurava sua mão e ele segurava a minha de volta, tinha tanto amor e tão pouco tempo que não sobrava espaço algum para raiva naquele quarto.

Quando penso naquele verão, eu penso naquele dia. Eu penso no vento e no sol na praia, na silenciosa tristeza que dividimos, nas respirações pesadas dos meus pais percebendo que suas próprias vidas já haviam passado da metade. 

  • Antes do fim do verão, dirigimos até uma colina perto da praia onde íamos quando eu era criança para espalhar as cinzas do meu avô.  Em silêncio, cada um pegou da urna mãos cheias de cinzas. Olhamos para o céu azul, que repentinamente parecia ter se tornado infinito novamente, e abrimos as mãos sob a água. Não foi como é nos filmes. O vento estava forte levava as cinzas para todo lugar, toda direção. Se fossemos poetas acho que poderia ter sido poético, uma metáfora para morrer e se tornar novamente parte do universo, algo sobre sermos tudo e nada ao mesmo tempo. Mas não éramos poetas, e meu pai fez uma piada sobre vovó estar espalhado em nossas roupas em uma tentativa de nos fazer rir um pouco. Rimos um pouco.
  • Quando penso naquele verão, eu penso naquele dia. Eu penso no vento e no sol na praia, na silenciosa tristeza que dividimos, nas respirações pesadas dos meus pais percebendo que suas próprias vidas já haviam passado da metade. Penso naquela cadeira, na televisão antiga, no cheiro de livros, no cheiro de limpo e esterilizado, e em segurar sua mão. Eu penso na dor também, claro que penso; no quão silenciosa pode ser. Eu penso em crescer, em me sentar na areia ouvindo as ondas e na sensação de que havia aprendido algo que precisava ser aprendido. Eu penso em como a dor como muito devagar se transforma em uma versão de si mesma com a qual é suportável viver. Quando penso naquele verão, o verão em que me tornei uma leitora, eu me recordo das noites no hospital em que ele sorria para as palavras de seu livro favorito  como de fosse a primeira vez que as ouvia e em um momento de felicidade indomável, apertava minha mão.

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